quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

# aspas (xlviii)


“Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem.”
José Saramago, em "Ensaio sobre a cegueira".


sexta-feira, 11 de agosto de 2017

# à guisa de blasfêmia



"Dia do Advogado".

Um bom pretexto para muito brevemente se falar do Direito, instrumento de manejo do militante jurídico.

Se antes canonizado como uma ciência em si, tinha-se um Direito ensimesmado que provocava e frutificava o não-Direito, soerguido sobre a esquizofrenia jurídica de um mar de teses e decisões que nasciam da mesquinhez do causídico e da luxúria de magistrados e promotores; com tal fórmula, multiplicavam-se os aldrabões que rodeiam a metodologia (e o conceito) do Direito porque esse desfila sob o véu de um dogmatismo fajuto e retrógrado.

Hoje, mergulhado no caos por conta da sua transfiguração em Moral, o Direito descaracteriza-se, perde a sua razão de ser e passa a exigir, ainda que à margem desse momento tresloucado de "Lava-Jato", uma refundação.

O Direito, pois, precisa se transformar, ao menos, e imediatamente, no que toca a sua metodologia.

O Direito, para verdadeiramente funcionar, precisa se afastar de um conteúdo formal-idealizante, de modo a finalmente realizar o papel de transformação social e se consolidar como um instrumento de emancipação (e não de dominação), como ensinam Boaventura Santos e Mangabeira Unger.

Afinal, no seio do capitalismo liberal, o Direito subsiste como uma de suas ferramentas mais agudas de imobilização democrática.

E de um Direito que se quer apartado da Justiça, como na rotina enclausuradora de pobres e pretos, e relativizador da Lei, como no modus operandi das operações da Lava-Jato.

Todo o contexto contrarrevolucionário que afeta a sociedade tem no Direito hoje aplicado seu mais sólido baluarte, seu cão de guarda mais obediente e amedrontador.

Desde a crise do positivismo, maiormente no século XIX, os juízes deixaram de ser porta-vozes mecânicos da Lei e, com isso, a sua autonomia e dignidade constitucional passaram a ter um relevante papel na formação do legal e na oferta do justo.

Entretanto, o movediço avanço motivado por um tal neoconstitucionalismo tem provocado um Direito sinistro, que finca raízes no voluntarismo judicial, idealizador de um juízo moral ou da vontade política do aplicador da lei, no qual cumprir ou não a lei estaria na consciência mais ou menos iluminada desse, ao arrepio das regras constituintes.

Por outro lado, nos mais diversos campos, institutos do Direito são encarados com a intangibilidade da fé.

O conceito de "propriedade privada", para ficar num exemplo, não pode subsistir sob a mesma fórmula milenar, mística e mitômana, do direito individual; hoje, longe de qualquer canônica receita soviete (ou rousseauniana), novas e plurais formas de direito de propriedade devem ser promovidas e reguladas, seja comunitária, associativa, cooperativa, coletiva, fracionada, social ou quaisquer outras possibilidades que esperam por descoberta.

Ou o direito penal, para ficar noutro caso, continua a tratar o seu objeto como bem privado, pois não percebe que, no ambiente de um estado democrático, admitir a privatização da defesa do réu, para longe da exclusiva tutela de uma defensoria pública, apenas contribui para a idealização mentirosa e não garantista da ampla defesa, que ao cabo percebe a quase solitária criminalização de pobres e pretos -- ou dos "inimigos" da sociedade -- numa seleção nada arbitrária (e natural) de classes de transgressores.

Por essas veredas é que se tem a ideia de transformação, de um Direito que dialogue com a heresia e a utopia para a reconstrução de uma nova matriz prático-metodológica, de modo a não perpetuar a mediocridade sufocante encarnada nos "homens da lei".

E, com ela, o advento de uma nova cultura jurídica que aproxime a justiça da cidadania e da democracia.

Sem a degeneração moral e intelectual de magistrados (v. aqui), promotores públicos (v. aqui) e advogados que atuam medusicamente atraídos pelos holofotes da mídia e do poder, agora cônscios e verdadeiramente responsabilizados pelos seus papéis num ambiente limitado e sustentado pelo estado democrático de direito.

Sem as relações feudais que envolvem os grandes escritórios de advocacia e os membros do sistema judiciário, agora desmercantilizando o método e o resultado das ações judiciais.

Sem a produção interpretativa à la carte que se afasta do quadro e do espírito normativos, agora repotencializando os ideais impessoal e democrático dos marcos jurídicos.

Sem a deficiência conveniente do Poder Judiciário que se sustenta na lentidão de um processo medieval e na distância de um sistema nobilíssimo, agora reformando a prática e o palco de aplicação do Direito.

Sem os salamaleques que registram a formação enciclopédica e escolástica de advogados, promotores e juízes ignorantes, insensíveis, bucólicos, neutros e a léguas da conjuntura e da história nacional, agora levando a realidade brasileira (política, social, econômica...) para os bancos das faculdades, pluralizando-as radicalmente, de modo a formar cabeças verdadeiramente conscientes e independentes.

Sem o oco dos imperativos constitucionais de papel que criam sombras de direitos fundamentais e amarras heterogêneas de realização, agora oferecendo alternativas ao Direito, com novos conceitos e atores (e movimentos) sociais capazes de produzir novas fontes para a própria libertação sob a perspectiva dos grandes e intocáveis conflitos nacionais.

O estelionato funcional, a picaretagem científica, a esterilidade jurisdicional, a assepsia social e o fetiche institucional são, pois, os grandes enfrentamentos perante os quais a comunidade jurídica, para a reconstrução do Direito e a realização da Justiça, não pode tergiversar.

É a nossa dignidade pessoal de juristas e a dignidade da nossa ciência que estão em jogo.




quinta-feira, 27 de julho de 2017

# tijolo com tijolo num desenho lógico



Vamos com calma.


Discuta-se, sim, princípios, regras e métodos do processo penal adotados pela polícia, pelo MP e pelo juiz federais; aprofunde-se, outrossim, o fim político e não judicial das ações; radicalize-se, ainda, as críticas à postura partidária da mídia e esquizofrênica da oposição.


Entretanto, não se pode inverter a ordem lógica da coisa.

Afinal, terem sido presos mafiosos de tantas bilionárias famílias de bandidos – e que tanto estão a confirmar o modus operandi do histórico negócio a envolver Estado e empreiteiras –, é um fato muito positivo da nossa República, finalmente dando a cara do outro lado da moeda, ou seja, escancarando que o "mercado" (empresas privadas) são co-protagonistas do espetáculo da corrupção (v. aqui). 


Por isso, a "solução" que se pretende dar às investigações da operação "Lava-Jato", de que se deve salvar estas tantas empresas picaretas da construção civil, é de um surrealismo atroz.


E o que mais espanta é que tal ideia não parte dos eternos donos do poder, sempre carinhosos com a banda podre da dinheirama nacional, mas, sim, da mídia e das vozes alternativas e, pior, de parte da centro-esquerda brasileira.

Ora, não são apenas as cabeças (e os troncos, e os membros) destas empresas que precisam ser liquidadas, mas sim os seus espíritos, pois, caso contrário, continuarão, por meio de familiares, laranjas e mandatários, a tomarem conta dos seus sujos negócios em detrimento do interessa nacional. 

Logo, fechem-se todas.

Cassem-se suas licenças, seus títulos, suas obras e seus contratos.

Consultem-se os astros, os signos, os búzios e se apoie em tudo que é tipo de dogma para defenestrar este bando que há decênios surrupia, em conchavos espúrios com o poderes republicanos, os cofres públicos.

O "caos", meus caros – diferente de outro caos, aqui –, seria continuar dourando esta pílula, continuar admitindo o perdão eterno e deixá-las vivas.

Too big to fail? 

Não, não também neste negócio da construção civil.


E se pode, sim, parar de alimentar o monstro.


Ora, saem estas e, na fila, há quilômetros de outras tantas empreiteiras que teriam o máximo desejo de construir para o Estado – e, particularmente, para a grandiosa Petrobras (v. aqui) –, mas que sempre foram abafadas pela máfia que comanda este meio, a conformar um dos mais nefastos cartéis do país. (v. aqui e aqui, num caso recente).

Com o fim destes gigantes empedernidos, as demissões seriam em massa, é claro – como até já está a ocorrer, tão-somente com as suspensões dos contatos.

Entretanto, as centenas de milhares de trabalhadores que perderiam os seus empregos, seriam reempregados pelo novo batalhão de construtoras que ingressariam, de verdade, no mercado – ou, melhor ainda, num mercado de verdade – a sós, em parcerias ou em consórcios, nacionais ou multinacionais, sendo nesse caso com um rígido controle sobre dividendos e a remessa de lucros.

Logo, ainda que em tese a ser talhada na prática, em cada rincão onde o Estado constrói, novas construtoras abraçariam a causa, e em cada canteiro reentrariam toda uma mão-de-obra antes nas mãos dos mesmos.

E para isso a máquina pública precisa, rapidamente, tomar atitude e resolver, sem levar tudo num banho-maria. 

Alguns questionarão: "Ah, mas apenas essas empresas é que detêm a tecnologia, as técnicas, a escala e a estrutura produtiva necessárias para a construção pesada e de vanguarda..."

Ora, o ponto, então, é o seguinte: que se salvem as "empreiteiras" (e a tecnologia, as técnicas, a escala e a estrutura produtiva), mas não a "propriedade" dessas empresas pelas famílias e grupos historicamente mafiosos, pois os "padrinhos" presos não significa que a famiglia deixe de continuar recebendo seus quinhões de faturamentos bilionários.

O ponto, ainda, vai muito além disso: qual a lógica – a não ser a ideológica – para que o Estado, por meio da Administração Pública, deixe de fazer por si ou sob as suas rédeas (quase todas) as coisas?

Afinal, como aqui sublinhou o Prof. Boaventura, "se o Estado fosse por natureza mau administrador não seria tantas vezes chamado a resolver as crises econômicas e financeiras provocadas pela má gestão privada da economia e da sociedade"; o Estado "só é verdadeiramente mau administrador quando os que o controlam conseguem impunemente pô-lo ao serviço dos seus interesses particulares por via do fanatismo ideológico, da corrupção e do abuso de poder"; em suma, o Estado "é considerado mau administrador sempre que pretende administrar sectores da vida social onde o capital vê oportunidades de lucro".

Portanto, por que o próprio Estado brasileiro não finca os seus pés nisso e cria uma empresa pública na área, uma Construção Civil Brasileira S.A, uma "CONSTRUBRAS", coadjuvada por tantas cooperativas locais criadas para o setor e por tantas pequenas empreiteiras regionais – ainda que alavancadas com regulado capital estrangeiro, especialmente se necessário para a transferência de tecnologia e a (re)formação de capital intelectual –, em cujo desenvolvimento estaria, literalmente, a construção coletiva de um povo?

Ora, dentre outras razões não nos esqueçamos que grande parte dos "investimentos" que o setor privado faz advém dos bilionários aportes financeiros do próprio Estado, por meio do BNDES, o qual empresta a juros subsidiados e parcelas infinitas às maiores empreiteiras do país.

Do outro lado do mundo, a "China State Construction Engineering Corporation" (CSCEC), entre outras estatais chinesas deste mercado, é um fenômeno que quase humilha (v. aqui).

Hoje como a terceira maior do planeta, mostra como uma empresa pública pode concorrer com outras centenas de empresas privadas e, com isso, beneficiar toda uma nação, pois, por meio de sua atuação no mercado, (i) controla os preços, (ii) consegue regular a demanda e a oferta de mão-de-obra no setor (emprega anualmente 800 mil trabalhadores), (iii) multiplica e pulveriza a participação de pequenas empreiteiras, pois terceiriza os contratos regionais conquistados e (iv) evita a concentração privada do mercado (oligopólios).

E não é só entre-muros que esta gigante chinesa da construção civil mostra-se eficiente e competitiva – a título de exemplo, ela frequentemente tem assinado contratos nos EUA (v. aqui), onde deve provocar as mais coceguentas urticárias na turma nativa.

Claro que, tal qual acontece com a nossa Petrobras, a estatal chinesa é fonte de muitos interesses canalhas e tocada por ilícitos em todos os cantos e de todas as ordens; todavia, mecanismos de prevenção, controle e fiscalização que fortaleçam ainda mais a obediência ao interesse público são propostas muito mais sérias diante do clamor  infantil pelas suas meras não existências.

Mas não: "isso não pode ser", "isso não funciona", "isso não queremos", "isso é coisa de comunista"... lamentam quase todos.

Preconceito puro, desestímulo broxante, conveniência vil e um eterno medo de se promover alternativas institucionais que repensem o negócio.

E assim, mais uma vez o Brasil está a perder uma oportunidade de chacoalhar as estruturas deste capitalismo fajuto que há tanto tempo tanto nos (des)engana.



quarta-feira, 1 de março de 2017

# trem-fantasma



E atrás do trio elétrico só não vai quem não pode pagar.

Mais uma vez o Brasil avaliza, tacitamente, um desserviço à sua gente.

A triste realidade que pouco encanta nos quentes trópicos da adorada Bahia finalmente clama e já não mais se desengana por um revigorado programa: o lampejante e autofágico fim de um modelo, um modelo até então assente nos versos de Caetano que dizia "atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu".

Concomitante a todos os efeitos do (ultra)capital no (hiper)consumo que assolam a sociedade e se consolidam na "constituição cultural", em Salvador -- e urbi et orbi? -- tem-se privatizado o carnaval, a deixar que apenas uma ínfima minoria permita-se pagar, entrar e, como se pisasse em chão de esmeraldas, ir atrás de um trio elétrico, enquanto a massa fica, perifericamente, na agonia espremida e distante, d´além corda, vendo do milimétrico e abafado lado de lá a vitrine passar.

De um passado que buscou justamente oferecer ao povo quatro dias de festa e então propiciar à senzala momentos de "alegria, alegria" tal qual àqueles gozados nos salões da casa-grande, o cotidiano traz um festival de preceitos privatistas e elitistas: sim, o fim veio a galope e, enfim, parece ter transformado a máxima festa do povo em um vil mercadoria, bem ao gosto da turma bem-cheirosa conservadora.

Hoje, pode-se notar que se pratica na capital baiana um outro gênero da segregação, um apartheid social, que faz o carnaval, se visto a olhos puros, parecer um baile aristocrata, com a nobreza bem definida, alva, cuidada e protegida ao centro e os serviçais carcomendo-se pelos lados, pelo cantos e pelos subterrâneos das ruas.

Com vestimentas e cordas, escolhe-se o "bom" e o "mau", separam-se "gregos" e "troianos", segrega-se o "sangue azul" do "sangue quente", divide-se o "branco" do "preto', aponta-se erradamente o "joio" do "trigo".

Com "abadás" -- vestes para identificar o bem e o mal -- e "cordeiros" -- seres humanos que são pagos, com trocados, para juntos segurarem as "cordas" que envolvem e separam os eleitos do resto) -- pretende-se expor toda uma população que inventou, criou, fez e se apaixona à barbárie de ruas e ruelas congestionadas e inescapáveis e à selvageria de fazê-la disputar a tapas os centímetros quadrados do espaço público, uma vez que tudo (percurso) e todos (segurança) ficam reservados à fidalguia intracordas, com benesses, bar e banheiro exclusivos.

Com preços exorbitantes e convites vip, retorna-se ao tempo de suseranos e vassalos, de corte e plebe, de homens e de ratos, pois, em prol da burguesia sulino-paulista ou do mass media, alija-se o povo daquelas suas terras, das suas ruas e da sua festa.

E quem ganha com isso?

Os homens de black-tie, as "pessoas muito importantes", empresários, políticos e, não se esqueça, os músicos, os quais jogam banana e cospem os seus chicletes na cara do povo, uma vez que hipocritamente tergiversam a esfoliação praticada por aquele show business, outrora um simples "carnaval de rua".

Com urgência, antes de uma possível catástrofe urbana ou de um motim popular já saturada ou intransigentes diante da indecorosa realidade, os órgãos e as empresas estaduais precisam se movimentar.

Devem, pois, reassumir as rédeas delegadas ao mercado e promover a sequiosa regulação e reorganização dessa grande festa, pois, diante da imperiosidade e da inalienabilidade do espaço e do interesse públicos, deve-se rechaçar a usurpação e a capitalização que, infelizmente, hoje caracteriza a maior folia da terra.

Em Salvador, ao invés de trios elétricos, o que se forma é um horrendo trem-fantasma.


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

# a nova escola: uma revolução



Alguém, um dia, em algum lugar, resolveu fixar um conteúdo programático para ser ensinado nos bancos das escolas do mundo, vasto mundo.

Assim, por toda Oropa, França & Bahia, foi estabelecida uma ordem pedagógico-educacional que, se tinha, hoje não tem qualquer fundamento – a não ser, claro, pelo lógica em si de todo o "sistema", coisa que o velho Marx, com a tese da alienação, já debulhou.

Nesta (des)ordem, cujo sistema de ensino é fruto da escola prussiana de treinar milicos para a guerra, lá do séx. XIX, o mal é manifesto: corrompe-se a energia, trava-se a criatividade e se fulmina a vitalidade de mentes jovens e abertas para o mundo. 


E neste caminho de idiotização robótica do ser humano infanto-juvenil, as ricas contracorrentes são marcadas como símbolos de mera rebeldia, de franca alucinação ou de bruxaria.

São aquelas que encorpam a "educação proibida", a qual pretende desacentuar a escola como "agência seletiva" do mercado e fortalecer a educação como função democratizante da sociedade, não obstante a reprodução social que, fruto de capitais econômicos e culturais absolutamente díspares, sustenta uma cruel desigualdade.

Primeiro, o que se tem em grande parte dos nossos jardins de infância é uma "brincadeira".

São, em regra, galpões pintadinhos de galinhas azuis que num estilo pré-fordista tentam sossegar os nossos pequenos leões, funcionando com um circo baldio no qual palhaços, focas e motoqueiras do globo da morte formam uma massa absolutamente estéril para o que se dispõe.

É, pois, a fantástica loja de depositar crianças que, sob o fanático espírito mercantil da sua líder (a tal "tia-chefe"), promete aos respeitáveis pais um grande espetáculo – mas, sim senhor, ao final entrega apenas a marmelada.

Depois, nos colégios, o que se ensina é um escárnio.

Pior, o que não se ensina é de uma flagrante insensatez, pois tudo vem condensado em saberes enlatados, mímicas da moda e ventriloquismos deterministas que esvaziam o ser humano.

Nas grades curriculares, disparates: em Matemática, passa-se todo um Ensino Médio apresentando (e se estudando) números complexos, polinômios, matrizes, equações de enésimo grau, e por aí vai; em Biologia, é um tal de classes de protozoários pra cá, conteúdo de caules pra lá, mitocôndrias acolá; em Química e Física, se insiste no aprofundamento de cadeias orgânicas, cinética, termologia, fluidostática e de tantos cálculos e fórmulas claramente bizarros e desprezíveis...

E nada, nada disso se aprende, pois não tem aplicação alguma, não tem qualquer importância e não subsiste no universo dos objetivos e na realidade cotidiana dos jovens, futuros adultos e potenciais profissionais.

Pelo contrário, só aguça ainda mais a ojeriza à escola e ao estudo, torna tudo mecanizado e frio e só inibe ainda mais o desenvolvimento mental e humano dos jovens.

E ainda mais grave do que (tentar) ensinar isto tudo, é passar à margem de tantas outras matérias e de tantos outros temas de importância e significado ímpares.

O foco, pois, tinha que ser outro: Filosofia, Política e Teologia, sacrossantas áreas do pensamento.

Porém, essas são apresentadas com desdém, sem padrão e sem a relevância devida.

Esquece-se que são disciplinas cruciais para a compreensão da sociedade e para o (auto)conhecimento, absolutamente vitais para o estímulo à reflexão e para tornar os adolescentes pensadores do que se professa em sala e do que se faz pelo mundo.

Mas, como mal lecionadas, mal trabalhadas e mal conformadas no calendário pedagógico, estes cânones do ideário intelectual moderno são, se tanto, servidos como fast-food, para insossa ingestão (e digestão) dos jovens, então totalmente descomprometidos com as causas e os ingredientes das ciências em jogo.

Além disso, outros tantos esforços tinham que estar concentrados na Língua Portuguesa (a última flor do lácio), nas Línguas Espanhola (uma pátria grande) e Inglesa (o esperanto do mundo pós-moderno global), na Lógica e na Matemática, na História, na Geografia e nas Artes.

Ainda, duas matérias criadas pelo regime militar deviam ser reincorporadas à grade juvenil, evidentemente pelo avesso daquele imposto ditatorialmente: "Educação, Moral e Cívica" e "Organização Social e Política Brasileira", as quais muito contribuiriam para a reformação e reconstrução cidadã de nossos jovens, hoje distantes do mínimo ideal cívico, ético e republicano e da mínima compreensão social e política do Brasil.

Também, uma estrutura de ensino com foco na vocacionalização e a redução do total de disciplinas  fragmentadas, com uma grade que ofereça o mínimo de disciplinas obrigatórias e autonomia para o aluno (e a família) preencherem sozinhos o restante do tempo – já alargado, como no Atlântico Norte – com cursos e matérias optativos em áreas diversas do conhecimento e da cultura.

E, com isso, auxiliar no desabrochamento das "virtudes" de cada um, identificando os talentos vivos e alimentando os sonhos reais de cada jovem.

Mais, a inclusão no conteúdo programático de todo o Ensino Médio de estudos e práticas que apresentem as principais atividades, ofícios e profissões e com elas se relacionem.

Afinal, é aqui, e com o curso de matérias que provoquem a reflexão e o raciocínio dos jovens sobre a vida profissional, que se melhor preparará o caminho e o terreno para as escolhas futuras 
– não será, pois, com este ensino de hoje e as suas toscas aulas de decoração, repetição e ruminação que um adolescente melhor será encaminhado à Medicina, à Música, à Engenharia ou às Ciências Humanas.

Ou há alguma dúvida de que tudo isso é muito melhor, mais importante e mais útil que anos e anos numa carteira ouvindo sobre sistema respiratório de crustáceos, sobre tabela de Linus Pauling, sobre circuitos elétricos e sobre logaritmos?

Mas, é claro, para isso a premissa é mudar o conteúdo das provas de ingresso à universidade e, claro, o próprio fim do fim do ensino colegial: o  "vestibular".

Ora, se mantivermos este sistema em que apenas se ensina 
– ou se dá máxima importância à – tabela periódica, estrutura do caule e equações de terceiro grau, o aluno certamente entrará num faculdade, mas não vai ter parado um momento sequer para refletir e pensar sobre as questões fundamentais da vida.

Por fim, talvez o essencial: a escola em tempo integral, como na maior parte do mundo civilizado ocorre. A transformação do "tempo" para os nossos jovens será o caminho para uma nova vida.

Aqui, portanto, a grande importância e o preponderante papel do Estado, particularmente no plano federal, como principal e renovado meio para se apresentar e cobrar real conhecimento 
– cultural, crítico, valorativo, reflexivo e imaginativo , num terreno que prepare a maior mudança de sempre,  um novo paradigma de educação e de escola: a "Pátria Educadora", como uma dia pretendeu o governo brasileiro (v. aqui).

Portanto, afora base e princípio familiares, será apenas por meio de um Ensino Médio inovador, criativo, alternativo, analítico, participativo e ecoante que conseguiremos ver a mínima transformação na cabeça dos nossos jovens 
– ter-se-ia, pois, uma educação que liberte, a "pedagogia da libertação" que pregava o gigante Paulo Freire.

E essa, pois, seria a nossa pequena revolução.

Caso contrário, abdicando-se de uma real e verdadeira educação, teremos nossa juventude continuamente refém do enciclopedismo vazio de uma escola mercantil e das teses e verdades propagadas pela tv e pelas redes sociais e sob o cabresto do sistema vigente.

Afinal, o que se quer é uma educação que nos ajude a pensar, e
 não uma que nos adestre para obedecer.


You say you want a revolution...


sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

# pela luz dos olhos deles



Se tantos tentam ser o pai que queriam ter tido, no espelho dos meus filhos tento ser um pouco daquele que tive.

E se por missão paterna este é o meu modelo, a própria paternidade me faz ver também um outro modelo.

O modelo do amor pleno, do amor incondicional, do amor maternal.

Pois é, ser pai me faz regredir para poder ver a minha mãe.

É na mãe dos meus filhos que consigo transpor a minha própria mãe, e agora poder ver, com os olhos que esta terra há de comer, tudo o que tive na minha vidinha infante.

Sinceramente, não tinha a noção do tanto de amor que cabe na criação de um pequeno ser – neste meu cotidiano, passa um filme do fim dos anos 70 cujo enredo é o amor maior do mundo a mim tributado.

Agora, de perto, já não mais duvido que quase dê para pegar no tanto de sentimentos que se materializa nesta relação de mãe e filho – e, sejamos francos, da mãe para o filho.

Ora, bem miúdos parece que retribuímos tudo instintivamente, meios selvagens, numa ideia primitiva de desejos felinos (ou primatas) de saciar nossas orgânicas vontades.

E, já crescidos, lembramos que não conseguimos lembrar tudo o que, plena e insistentemente, as nossas mães faziam por nós naquela época da plena dependência.

Eis, pois, o mais incrível: as mães tem plena ciência de que toda aquela oferta não lhes garante nada, sequer a gratidão futura que se costuma ter da memória em concreto, afinal, o que passa nos primeiros trinta meses de vida fica apenas guardado num subconsciente semântico qualquer – e, convenhamos, talvez só isso explique o que de nós, filhos, virá pela frente...

Hoje, vendo o tamanho e a intensidade da atenção, da abnegação, do zelo, do carinho, do desvelo e do amor que a mãe do Benjamin e do Santiago dedica a eles faz provocar em mim um sentimento de infinda dívida.

Vendo o que hoje vejo em minha casa, em cada fim de dia, em cada fim de semana (e até o fim do mundo), fico mais do que nunca com a certeza de que serei um eterno devedor de minha mãe em seu amor total, sem medida e sem condições.

Amor de uma época da qual jamais me lembrarei.

Mas que, se não carregava na viva memória e se achava mesmo que não via, agora posso ver e mensurar o quanto de amor sob o qual vivia.

E pela luz dos olhos dos meus filhos sei, enfim, o que não sabia com meus tão poucos anos.

Neste reflexo, estou a amar um amor de já quarenta anos.