quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

# que só tem o sol que a todos cobre



Por que ainda vivemos em um país com índices de desordem relativamente baixos?

Por que não vemos diuturnamente arrastões, avalanches, explosões, sangue e tsunamis de quebradeira e violência pelas praças, praias e pradarias das polis, eminentes sobreviventes dos espaços públicos das nossas cidades?

O olhar e olfato comuns, sob o senso midiático, faz acreditar que estamos todos sofrendo igual.

Mentira.

É a favela e a periferia que vivem sob o diário domínio do medo, num caos e com a selvageria aos borbotões, intrépida e incessantemente batendo às suas portas, dos dois lados: "mocinhos" e "bandidos" atiram para matar.

E, ora, aqui era para ser diferente: isso aqui era para ser muito pior.

Era para ser uma Síria em todos os lugares, uma Faixa de Gaza a todo tempo – e não apenas nas nossas Sírias e Faixas de Gaza de sempre.

Afinal, arromba a retina a brutal e catastrófica desigualdade no Brasil, uma distância medida a anos-luz entre nossos dois mundos, entre as nossas duas cidades-realidades.

Duas sentenças resumem bem este estado de coisas e nos permitem refletir os porquês: primeiro, com Noam Chomsky, quando diz que "a grande maioria da população não sabe o que está acontecendo e sequer sabe que não sabe"; depois, com Leonardo Boff, ao dizer algum tempo atrás que "se os pobres soubessem o que estão preparando para eles, não teríamos ruas suficientes para tanta luta". 

De um lado, ricos, brancos e encastelados em uma vida fidalga que vagueia por um consumo hedonista e que se desbunda na busca da maximização da boa vivência, com seus umbigos como centro de tudo.

Do outro, um contingente de pobres e pretos emputecidos com o cotidiano dantesco que margeia a miséria e que faz suar sangue em busca da mínima sobrevivência, umbilicalmente ligados ao nada periférico.

No primeiro Brasil, a nobreza goza um padrão de vida superior ao daquela parte de um planeta em que o padrão é todos terem, a gozar de uma vida cheia, com mais ou menos exageros – esta nossa elite é a máxima elite de países ricos.

No segundo, a malta estropia-se sob uma ordem social semelhante àquela dos parturidos nos bolsões onde o vazio impera e cujos padrões de desprezo e descaso são, sem exagero, simplesmente trágicos – esta nossa gente é aquela gente das regiões mais miseráveis do planeta.

Por isso repito: neste nosso Brasil, uma desigualdade tão atroz e abismal deveria produzir catarses diárias, inconsequentes e revolucionárias, ataques incondicionais e diuturnos, em todo canto e a cada minuto da madrugada.

Mas não só do outro lado, na terra feita de ninguém para "subcidadãos", no chão batido do subúrbio e sob os tetos de zinco das favelas onde tentam sobreviver contra a violência do Estado, da milícia, do narcotráfico, da sociedade... enfim, contra tudo e todos.

Por isso não falo desta luta; falo do "caos".

E não de um caos particularizado, daquele no qual está mergulhada a massa brasileira invisibilizada.

Eu falo do amplo e generalizado caos.

Sim, o Brasil seria digno de sofrer sob trevas e escuridão infindáveis (v. aqui).

Afinal, não estamos a tratar de nações uniformemente pobres, igualitariamente miseráveis; somos, ao contrário, a sétima maior economia do mundo na qual pulula uma diferença social avassaladora, uma disparidade econômica ultrajante e uma dessemelhança humana quase pecaminosa.

Em suma, falamos de polos positivo e negativo, de dignidade e indignidade, de tudo e nada convivendo juntos, lado a lado, com poucos choques, com poucos sentimentos e com pouca mescla.

E mesmo assim o Brasil de cartão-postal (ainda) não se vê em frangalhos, não é atingido pela pulsante guerra no seu interior e não revela uma revolta bélica – a não ser o de "classe" – incapaz de aceitar este nosso tradicional estado de coisas.

Bem se sabe que há espaços urbanos onde, tal qual na órbita do grande capital, vigem códigos de conduta e ética de convivência alternativos, sob o império da legalidade à la carte, à mercê de regras e instituições paralelas que fazem destas áreas nossas múltiplas sírias.

Mas, mesmo assim, fora destes outros mundos, no "centro" não se nota a descortinação do Direito.

Não se vê a ameaça constante por parte dos excluídos sobre os superincluídos, não se vê a multiplicação de Robins Hoods do bem e do mal – como aqui lembramos – e não se verifica a atuação costumeira de rebeldes sociais em busca do brioche nosso de cada dia, certamente preocupados em tentar comer as migalhas do pão que o diabo amassou.

E por quê? Por que esta bomba-relógio insiste em não explodir nuclearmente? Qual o freio inibitório desta nossa gente?

Há o argumento "policialesco", pela mais desumana presença da força militar no meio das comunidades pobres miseráveis, que mata para impor uma pseudo-ordem e fantasia uma ordem matando. Uma ordem que aprisiona na ilusão da liberdade e prende a torto e a direito para acabar com sonhos e vidas. Mas será que este medo é suficiente para não encorajar a rebeldia da transgressão, haja vista o que está em jogo para toda a abandonada ralé?

Depois, o argumento "religioso", pela fé divina no comportamento honesto que leva à salvação, ou "bíblico", sob a tese já anunciada no Gênesis, naquele longínquo sexto dia ("e criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou"), e com isso temos visto tudo quanto tinha feito, e com isso tem nos parecido que, apesar de tudo e de todos, é muito bom. Ora, se por um lado muito metafísico para suportar toda a carência real de tantos milhões de cidadãos sem nada e absolutamente entregues à própria sorte nascitura, certamente por outro lado o estratégico papel das igrejas neopentecostais na formação psíquico-ideológica deste gente tem lhes abastecido de esperanças para a realização das suas necessidades físicas, o que lhes exige como contraprestação a cessão do corpo e da alma traduzida em obediência e ordem.

O "familiar"? Talvez, mas, não sejamos ingênuos: como os pais, os filhos e e todos os espíritos de outros exemplos intramuros haveriam de ser páreos para tudo o que se vê ao redor de luxo e luxúria?

O "pessoal" e "histórico-antropológico", ou seja, o ethos assente em proposições como a cordialidade, o adoçamento e outras raízes? Balela, eles até ajudam a esclarecer algumas coisas a partir do ofendido, mas nunca do opressor, basta ver o nosso imenso ranço e amargor de quinhentos anos da mais vil exploração.

O "prático-político", pela própria maneira que os progressistas encaram as potenciais chamas de rebelião, geralmente não participando da organização e contestando parte do repertório mais radical que se costuma adotar em manifestações e mobilizações contra a ordem vigente, e assim freiam uma real escalada do caos, unindo-se à fala conservadora? Talvez.

O "educacional" e "cultural", pela ausência de consciência da sua condição e da realidade nacional, resumida na ideia de alienação que faz deste povo incapaz de compreender a estrutura e as engrenagens da nossa sociedade e de se organizar politicamente, e a partir disse rebelar-se? Sim, mas há tantos outros sítios mundo afora com base educacional-cultural similar mas com outra resposta popular. Ademais, a grande massa não pode ver na educação, no trabalho e na vida obreira dos seus pares fontes (e pontes) para o futuro, muito provavelmente incapazes de tirá-la do chão de miséria, de assegurá-la as mais básicas necessidades e de atender ao consumismo platinado que tanto incita o desejo felino de ter para ser.

O "Estado Democrático de Direito", a "Carta Magna", os "códigos", as "consolidações" e os "comitês" de marchas, sindicatos e circos? Um pouco, um pouco, quase nada.

Mas, além, creio que isso tudo possa estar resumido numa ideia maior, absolutamente abrangente (e talvez simples): a "dominação ideológica" tão enraizada nestes trópicos, na qual o dominado não se vê nessa condição e compartilha da "visão de mundo" do dominador, sublimando a luta de classes para em grande medida fatalizar o futuro, aceitar o presente e  naturalizar o passado.

E chego a uma breve, e talvez óbvia porque complexa, conclusão de que tudo se esclarece na reunião de todas estas teses, numa mistura de tons, talantes e tinos que há séculos nos forma: colonização, escravatura e capitalismo.

Algo que, talvez, só assim ajudasse a melhor compreender o sentido pouco notado da nossa imagem e semelhança divina.


A centelha da vida