segunda-feira, 13 de outubro de 2014

# os anzóis


Um dos motes da ira transpirada pelos reacionários de plantão funda-se na ladainha de que o maior programa de transferência de renda do planeta -- o "Bolsa-Família" -- é um assistencialismo barato de compra de votos para manutenção do poder.

Antes, uma premissa irrefutável: este programa, por si só, não leva a nenhum outro lugar senão aplacar a fome -- é muito, claro, mas é paliativo e não-estruturante.

Ademais, é claro que não podemos ser ingênuos e achar que tudo funciona bem, maravilhosamente bem. E que não há o contingente de beneficiários vadios e prefeitos inescrupulosos -- essa turma, pois, é parte da nossa difícil condição humana, demasiadamente humana.

Porém ("ah, porém..."), ao cabo, funciona muito bem, como deve (e precisa) funcionar qualquer programa de proteção social mundo afora: mitigar a miséria, mitigar a dependência de caridade e a sensação de frustração e impotência sentida por esta ardida gente sem trabalho e sem perspectivas, que mendiga ou se escraviza.


É assim, por exemplo, que acontece nos EUA, com milhões de beneficiários do "food stamps" -- v. aqui.

E mais.

No caso do nosso "Bolsa-Família" -- lembremos que o programa é modelo de erradicação da pobreza, segundo a ONU  (v. aqui) -- ele difere dos tantos que há em razão de três das condicionalidades programáticas fundamentais: presença escolar, exames pré-natais e carnê de vacinação infantil em dia.

Aqui, portanto, tem mais eficácia pelo fato das famílias conseguirem com esse dinheiro desobrigar a criança a ir trabalhar para ganhar, em média, 168 reais no mês, e desobrigar o Estado a gastar tolamente em parte da saúde básica infantil (solucionada com as simples vacinas) e materna (com os exames pré-natais).

E, pela enésima vez, o programa foi esmiuçado pelo Governo Federal, a fim de confirmar o enorme preconceito existente sobre ele, conforme se pode ler aqui.

Logo, o que não dá, e o que nos causa náuseas, é a gritaria fascista da turma que, contaminada ainda pela branca cegueira daquele esplêndido "Ensaio" de Saramago, vê tais programas como desnecessários ou, pior, como estímulos à vadiagem, arrastando aquela ladainha de que o certo é "ensinar a pescar e não dar o peixe".

Uma balela de quem conseguiu "aprender a pescar" por já ter -- máxima regra -- os anzóis e a barriga cheia de peixe.

De quem não enxerga que uma coisa depende da outra: peixe e ensino, comida e educação, fome e anzol... elementos, pois, indissociáveis.

Pior, exaltam e se gozam quando veem o que rola na França (dois anos de seguro desemprego...), na Escandinávia (infindáveis bolsas, de tudo que é tipo, gosto, cor...) e nos EUA, mas detonam toda e qualquer iniciativa nacional.

"É populismo barato!", brada brava aquela gente.

Ora, mas é assim mesmo que o Estado também deve agir, com políticas para ao povo, populares e populistas, sem usar para esse a conotação pejorativa que por aí insistem.

E é por isso que, para continuar existindo, seja tão importante que junto às políticas sociais, especificamente no caso do Bolsa-Família, convivam duas presenças estatais, absolutamente fundamentais.

Primeiro, a "presença física", com salas de aula e professores e com centros e profissionais de saúde, dignos e competentes, vivos e presentes.

Depois, a "presença técnico-financeira", mediante programas (i) de microcrédito como incentivo aos micro e pequenos negócios -- e por isso o papel crucial dos bancos públicos, com juros subsidiados e regras flexibilizadas --, (ii) de fomento à agricultura familiar (PRONAF) e (iii) de educação técnico-profissionalizante (PRONATEC), todos absolutamente abandonados ou sucateados na época tucana.

Soluções nem tão simples, mas nem tão utópicas, inclusive porque já iniciadas.

Políticas de transferência de renda (articuladas e agregadas a outras, como é o caso, ou com condicionalidades, como também é o Bolsa-Família) são, assim, factíveis e devidas, em especial para o país que mais concentra renda do mundo e para a necessidade de acabarmos com a "armadilha da pobreza".

Basta termos coragem e competência para implementá-las, afinal, não se faz justiça e equidade sociais apenas dando 160 reais para um depauperado lar.

Assim como não se faz não dando...
fds