quarta-feira, 3 de setembro de 2014

# aspas (xlii)


A fascinante crônica do Velho Cronista sobre a grande noite que se reinaugura logo mais.

E nada mais precisa ser dito (v. aqui).

Olhe lá, a Baixada quieta, calada feito criança culpada, não dispara um único som. Dorme um sono pesado, de concreto e ferro fundido.
Descansa, calma feito noite fria.
Tudo está quieto demais no front.
As trincheiras estão vazias, os bunkers estão desabitados, as casamatas estão desguarnecidas.
E todos nós já vimos filmes de guerra o bastante para saber que esse silêncio verborrágico, essa calada perniciosa, prenuncia um estrondo fatal e desvairado.
Na calada da noite, enquanto os santos dormem, uma multidão inteira, com pensamentos peçonhentos, ocupa as trilhas que levam ao Estádio Joaquim Américo.
E quando nos dermos conta, aquele estádio estará integralmente tomado por um povo ensandecido, com pavilhões e fardas a chacoalhar nas mãos, ecoando cânticos elevados e promissores.
Quando rebentar o primeiro disparo será como o estouro de mil manadas a correr, cascos febris castigando o concreto em galopes ligeiros.
Hoje, a imensa torcida do Clube Atlético Paranaense vai matar, com ferroadas lancinantes de fascínio, toda a saudade da sua casa.
E a massa vermelha nem vai ter tempo de chorar a emoção da volta. Mal vai pisar no concreto imaculado da Baixada e já vai ter de entoar gritos de escora e auxílio, empurrando o escrete para cima do adversário, posto que o encargo do Atlético-PR é mastodôntico: precisa impor terríveis três gols no tinhoso time do América-RN.
Quarenta mil almas serão forjadas no desespero e na aflição, curvando a cada giro do relógio. Os céticos – se é que ainda existem depois daquele embate contra o Sporting Cristal, comprado no calor das penalidades – que não apareçam por lá.
Este estádio, meus caros, não foi erguido para incrédulos. Ele foi feito para quem, à imagem dele, foi criado a ferro e fogo, a quem tem vigas no lugar de veias, a quem traz na espinha dorsal a firme convicção da virada.
Os ateus, portanto, que deixem espaço para quem segue esse time por toda parte.
Hoje, Curitiba sairá toda em romaria, gente de fé, multidão inteira, órfã de casa há mais de mil dias, que vem de pegar emprestados campos e arquibancadas Brasil afora, e que anseia em lançar mão de uma só vez sobre aquele campo que é só seu.
O Atlético-PR está voltando, enfim, para casa. E ele chega, pontual, no momento mais perfeito para o regresso: quando os estádios todos da Copa do Mundo já estão usados, frequentados, consumidos. O Joaquim Américo estreia hoje intacto. É como a joia guardada para o final, o presente que chega por último.
Obrigado aos Castelões, às Arena Manaus, às Fontes Novas, que abriram o espetáculo, mas é hora do recital principal.
Agora, todas as luzes desses holofotes curiosos estão mirando exatamente ela, a Baixada, que debuta hoje.
Morteiros vermelhos cruzarão os céus, canhões serão apontados para o centro da grama, lanças e setas viajarão pelo terreno. E o povão ensandecido encherá de cor aquele cinza e o Brasil inteiro verá que a palidez do cimento deste estádio é proposital – a matiz deste campo pertence ao povaréu nas arquibancadas, às camisas e flâmulas que tremulam incansáveis.
A Arena da Baixada hibernou por duas eternidades e agora se levanta.
E o país inteiro vai estremecer ao som dos seus rugidos.