segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

# mito de sísifo


Após um necessário período de hibernação, retomemos. 
 
E, en passant, tratemos da vida, ou da morte, direto das arquibancadas do jogo entre Atlético e Vasco, em Joinville. 
 
É que os acontecimentos deste triste domingo para a espécie humana provocaram-me a refletir sobre isso.
 
Os bichos que se violentaram, numa selvageria anojosa, gratuita, estúpida e voluntária, estavam dispostos a ter qual fim? 
 
Abstraindo-me, se possível fosse, de questões religiosas, defendo que a morte de todos  sim, todos, literalmente todos os que diretamente ansiavam por aquele momento, para se evitar que, sendo só de um ou outro desgraçado, não se faça injustiça ou, pior, façam-se mártires  os envolvidos naqueles atos seria natural, algo óbvio, calculado e pertinente. 
 
Note-se que se falou desejar ou querer a morte de outrem – para ainda tentar mais uma vez resgatar o fundamento cristão que sempre me move –, mas em respeitar o desejo de cada um dos bichos que se entreveram naquele cenário de cimento e ódio

Ora, eles estavam ali naquele meio porque queriam – não foram perseguidos, não foram abandonados, não foram surpreendidos e não foram iludidos até o local. 
 
Ora, eles foram para lá porque quiseram – não foram coagidos, não foram por dinheiro, ou por deus, pela pátria, pela liberdade ou pela revolução. 
 
Eles, sedentos e famintos como javalinas no cio, estavam à disposição para aquilo tudo. O fim, a morte, não lhes era algo caro ou diferente
 
Na verdade, eram indiferentes a ela. Era, sim, o maior barato ali estar. 
 
Se Hanna Arendt desenhou a “banalidade do mal”, as dezenas de animais que envergonharam a espécie humana banalizaram, ali, a vida
 
A vida entre eles, só deles e desprezada por eles, já não lhes tinha uma razão de ser, nem de existir; a morte entre eles, só deles e provocada por eles, já não seria um acaso, mas mero ocaso
 
Estavam, pois, dispostos a tudo: engolir, estrangular, marretar, ralar, rolar, roer, socar, quebrar, cortar, perfurar, pisotear, atropelar, amassar, morder e moer tudo, todos, inconsequentemente.
 
Não havia, portanto, qualquer causa ou consequência aos seus atos que os proibissem ou os impossibilitassem de agirem daquele modo. 

E se pergunta: pena? 
 
Alguém, não sendo um doente mental, que pela adrenalina senta num veículo de passeio para seguir pela estrada afora a 200 km/h e morre sem ver o lobo-mau? Suicídio involuntário? 
 
Alguém, não sendo um doente químico, que pela curtição se tranca num quarto para se entupir de heroína veia adentro e morre sem ver a fada-dos-dentes? Suicídio indireto? 
 
Alguns, não sendo doentes ou escravos civis, que pela adrenalina, pela curtição e pelo ódio, se dirigem a uma praça vazia para se agredirem incessantemente com tacapes, lanças e chutes, e morrem? Suicídio coletivo? 
 
Não, não me parecem casos de pena (salvo, é claro, em relação aos familiares, que em tese nada tiveram com aquilo e deverão sofrer pela perda dos respectivos entes amados...). 
 
Pelo contrário, são casos em que devemos respeitar os autodesígnios de cada um – o "livre-arbítrio", como ensinou Santo Agostinho  e os desejos felinos de curtirem as suas histórias.

São casos, como o de Joinville, em que até se chegaria num (insensato) nível de se lamentar o não-ocorrido  e tudo pelo bem da sociedade, pelo bem do futebol brasileiro e, repita-se, pelo bem de cada um dos envolvidos, uma vez que estavam bem dispostos a morrerem pelas cores vãs das suas facções. 

Lembremos: o futebol inglês, ou melhor, todo o estado de coisas que circundava (e preenchia) o futebol inglês, só mudou depois que dezenas de pessoas morreram – e lá a grande maioria injustamente! – em razão das podres condições do superlotado estádio e do enésimo confronto entre hooligans, os marginais torcedores nativos; hoje, a Inglaterra tem o maior, o mais rico, o mais cheio e o mais seguro futebol do planeta. 
 
O Brasil, portanto, precisa e clama pelos seus kamikazes, por seres dispostos a se entregarem  como ontem  para a redenção do nosso futebol. 

Logo, neste domingo parece que se perdeu uma grande chance disso acontecer, tamanha a sanguinária e voluptuosa vontade dos envolvidos, afinal, no baixio das bestas lá estavam elas, saltitantes, encubadas num terreno só delas para orgulhosamente morrerem. 
 
E, consumado o ato, lá na frente, talvez por piedade, poderíamos oferecer nomes de pontes, de pracinhas, de bosques ou criar um muro das lamentações em homenagem a cada um dos finados que prestaram um grande serviço à nação.

Como diria Fernando Pessoa, "absurdemos a vida, de leste a oeste".