quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

# cegueira branca


Viver fora dos nossos castelos dá vida, dá a vida.
 
Passamos a viver sempre com a epígrafe do Ensaio sobre a cegueira, de Saramago, na memória: "se podes olhar, vê; se podes ver, repara." (v. aqui, aqui e aqui)
 
E o Rio, um destes lugares em que você deve viver a pé, te faz reparar a vida.
 
Vida esta que mistura tudo e todos, em cada canto, em cada esquina, em cada lugar.
 
Preto, pobre, branco, azul, rico, médio, amarelo, marrom, miserável, milionário, tudo junto, escancarado  esta Copacabana não te separa do mundo, ele te insere nele.
 
E isto te provoca.
 
Contextualizo isto com o caso de hoje.
 
Há pouco estava no mercado, com Benjamin ao colo e na mão uma cesta: mate, farinha de trigo, gramas de queijo e presunto e um pacote de bolacha waffle.
 
Pois é, um pacote de bolacha waffle.
 
Na fila do caixa, aproxima-se um sujeito, meia-idade, meio fedido, todo fodido dos pés à cabeça, e me aponta para um bilhete plastificado que tinha na mão, fazendo sinal para eu ler.
 
Não leio.
 
A moça do caixa me chama, e eu sigo.
 
Ele me acompanha, e insiste, só com gestos e grunhidos.
 
A moça do caixa me dá boa noite, eu respondo, e ela começa a passar as minhas compras.
 
Ele não desiste, e aponta para a pequena embalagem de mortadela carregava junto ao bilhete.
 
Ele não fala.

Eu, de novo, não leio.
 
Mas escuto, enxergo e entendo muito bem o que ele quer.
 
E na hora, sabe-se lá por qual razão, não lhe dou nada, nem mesmo atenção.
 
A moça do caixa me dá a nota, os sacos de compras e outro boa noite.

Ele ainda me olha, mas não o reparo; e, pela terceira vez, não leio.

E saio, com meu pacote de waffle.
 
Sem virar pra trás.

Mas me viro para Benjamin.

E tenho um daqueles remorsos que te fazem imergir em trevas totais, imensas noites adentro.
 
Ali, por alguns instantes, atento ao meu maiúsculo umbigo, fiquei cego.