segunda-feira, 10 de novembro de 2014

# caiu o muro, não a alternativa





A viuvez que costuma tomar conta da maioria da esquerda mundial quando se fala na queda do Muro do Berlim precisa ser reavaliada e, especialmente, transformada.

Afinal, desde sempre as sociedades indignaram-se, revoltaram-se e insistiram numa alternativa de regime estatal que, antes de tudo, se caracterizasse pela "justiça" – que num sentido aristotélico e cristão representa a igualdade, mas que se contempla na realização equânime dos direitos humanose pela "liberdade" – no seu sentido kantiano, ou seja, assente na própria igualdade.


Há 25 anos – embora, sob o estrito ponto de vista político-econômico, há mais tempo – cessavam-se os efeitos mais imediatos da Revolução Soviética de 1917, a qual, dentre as mais importantes de toda a história universal, definitivamente colocou um tipo de socialismo – a etapa para o comunismo – como efetiva via para o desenvolvimento e para a construção sócio-político-econômica do Estado.


A sair do plano ideológico para assumir-se como fato histórico, o socialismo coloca em cheque pseudodogmas da ideologia liberal vigente, fazendo nascer um novo Estado que passa a objetar e contestar o (sacrossanto) mercado, a (falsa) democracia ocidental, a (desumana) concentração de renda e o (soberano) capital, entre outros temas que, não expurgados, ainda hoje mostram-se, crescentemente, reexaminados e reprovados.

Portanto, as consequências históricas daquele novembro de 1989 não podem ser entendidas como, já há muito propalado, um final da história, de forma que todas as sociedades fiquem à mercê das nefastas e infaustas (e já lutuosas) dinâmicas do sistema que veio querer brutalmente consolidar o capitalismo, na forma onipresente, onisciente e onipresente do “neoliberalismo”.
Por quê?

Ora, além das infindáveis crises que o sistema naturalmente provoca, algumas de gravidade ímpar, como a dos últimos anos, este capitalismo aumenta exponencialmente a desigualdade sócio-econômica mundo afora – v. aqui, em ótimo documentário que mostra os EUA ("Inequality for All") –  e restringe continuamente a liberdade dos povos ou classes mais pobres, negando-lhes o humano acesso à saúde, à moradia, à educação e à alimentação.

Não se pode acreditar – inclusive pelos próprios resultados que a todo o tempo se apresentam – que um sistema apolítico, sem Estado e encrostado na tese da soberania dos mercados possa ter um fim humano, minimamente humano, como se disse aqui, aqui, aqui e aqui.

E mais.

Em termos de regime de governo, a "democracia" que insiste em perdurar mundo afora centra-se num faz-de-conta que, a reboque dos donos do poder, mostra-se refém destes grandes grupos econômicos que abastecem a grande mídia para, livre, leve & solta, ao cabo tentar eleger mandatários dos Estados cujas políticas e ações públicas sirvam-lhes – portanto, não seria uma democracia do povo e para o povo, mas, apenas eleita pelo povo.

E a busca pela confirmação ou construção de um outro caminho é real e urgente – afinal, “there is alternative!”, ao contrário do que pregava a matriarca do neoliberalismo, Margaret Thatcher.

Assim, se Cuba, China e Vietnan, com seus muitos erros e acertos, despontam como os mais antigos países constitucionalmente socialistas do mundo – não obstante a abertura patrocinada pelos dois países asiáticos possa ensejar dúvidas existenciais por parte da esquerda mais apaixonada –, veredas menos traumáticas de alternativas institucionais devem ser imaginadas e implementadas, escapulindo das "necessidades falsas" que Mangabeira Unger ensina.

Logo, ainda que já tenhamos nos modelos de alguns países um consolidado rechaço ao capitalismo democrático (ou da democracia capitalista) ocidental como única via possível para o desenvolvimento e engrandecimento, é na América Latina onde parece tentar se conformar um contra-ponto àquela visão de planificação absoluta e, principalmente, uma alternativa ao capitalismo pós-moderno que raquitiza  a democracia, deifica o mercado e mercantiliza a vida.

Sem a sombra da derrota do leste europeu, essa nova América Latina que desponta – com Venezuela, Bolívia, Equador, Brasil, Argentina, Uruguai, El Salvador, Nicarágua, Costa Rica..., embora ainda com sensíveis diferenças de progressismo em seu interior – faz revigorar as certezas de uma esquerda que parecia desmotivada com o isolacionismo retrô cubano ou enganada pela enviesada propaganda midiática que esconde um dos lados do híbrido sistema político-econômico chinês.

Mais do que isso, faz materializar o eco de uma esquerda que luta pelo irretornável caminho progressista, cujas ideias fazem sobrepor a solidariedade social ao "darwinismo social", o Estado protetor ao "Estado predador" e o interesse público ao "interesse privado".

Hoje, a grande comemoração que o capitalismo, as democracias ocidentais e, maiormente, a direita promovem, deve, sim, servir à esquerda de lição histórica, a fim de evitar que os mesmos erros, as mesmas teimosias e as mesmas alianças se repitam; contudo, jamais pode significar a impossibilidade de se construir um novo e admirável mundo.

Sem o muro?
Sim, mas, principalmente, sem o grande muro social que, a fim de isolar a minoria encastelada, amontoa nas periferias e nos grotões das cidades a grande maioria da população que, continuamente, vê negada os seus direitos humanos fundamentais e distante a esfinge da justiça, ainda soterrada pela parte de cima da pirâmide social.



Trailer do thriller em que vive a sociedade americana