quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

# um arquiteto


Poucos desavisados, distantes do universo acadêmico ou alheios ao mundo das ciências jurídico-econômicas, indagam-me sobre o Professor António José Avelãs Nunes, Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e Vice-Reitor da mesma instituição, que me deu a honra de escrever o prefácio do meu livro (v. aqui).
 
Quis est?

Respondo-lhes, brevemente, com as palavras de um artigo escrito pelo Professor Doutor Luiz Edson Fachin (UFPR), um dos mais brilhantes juristas do nosso país, sobre o professor português e a sua última obra "Neoliberalismo e Direitos Humanos" -- na qual, sem nenhum dom premonitório, anteviu toda essa zorra e essa síndrome de reflexões que hoje aí está --, e que foi intitulado "Avelãs Nunes: arquiteto da ponte entre o reino da necessidade e o reino da liberdade":


fds Bate à porta um verbo do tempo presente que ainda tem flores para contrastar com a barbárie das pedras mais duras que cimentam um olhar sombrio sobre o futuro. É na conjugação da esperança que vamos encontrar a obra de António José Avelãs Nunes, recém publicada pela Editora Renovar e lançada para todo o Brasil, sobre neoliberalismo e direitos humanos.
fds O que nela se contém, em verdade, é muito mais do que aparentemente ali se vê: é uma lição de vida que relembra a saga cantada em verso por João Cabral de Melo Neto.
fds Em seu Auto de Natal Pernambucano, João Cabral traça o caminho percorrido desde a morte até a vida que abrolha dos recônditos mais insólitos, para consolidar a sua força e perseverança. Motivado por seu sonho, e por uma inesgotável fonte de esperança, singra o homem -- Severino -- o caminho de seu viver em busca da afirmação do sentido de sua própria existência.
fds Caminhada semelhante anuncia o Professor Doutor António José Avelãs Nunes em sua obra, quando nos indaga:
'Que expectativas se abrem aos povos injustiçados de todo o mundo?' (p. 118). Reforçando o valor da vida, não apenas vivida, mas também sonhada, nos responde o próprio professor: 'Ninguém terá uma resposta infalível, mas temos que ter a coragem de evitar que a censura totalitária do pensamento único nos impeça de dizer e de escrever aquilo que pensamos e nos impeça de pensar aquilo que dizemos e escrevemos'
(p.118).
fds Esta reflexão encontra guarida também nos versos de João Cabral de Melo Neto, cuja aproximação desvenda um novo modo de discorrer sobre o fenômeno econômico e jurídico, não como reprodução de modelos arcaicos e insatisfatórios frente às graves demandas sociais, mas como transformação do que se demonstra injusto e excludente.
fds Severino nega o caminho da morte que avulta em todo o seu itinerário que vai do sertão no interior pernambucano, na metáfora da morte, até Recife, espelho simbólico da vida. Na obra, o Professor Avelãs também recusa a ideologia do pensamento único, constituído no ideário de império por parte dos produtores da ideologia dominante que pregam a massificação dos padrões de consumo, dos padrões de felicidade, estes sim verdadeiros caminhos para a servidão (Hayek). (...). Do mesmo modo que Severino retirante não se resignou frente a seu destino certo, a morte morrida ou matada, não silencia o Professor Avelãs quando propõe, como alternativa a esta organização social que aí está, a modificação das estruturas de poder então vigentes.
fds Para tanto, faz-se imprescindível uma leitura política do fenômeno econômico para a satisfação das necessidades humanas e respeito aos direitos fundamentais, sempre centrando na idéia da dignidade da pessoa humana. O autor nos diz:
'O mercado (e suas leis naturais, apriorísticamente capazes de resolver todos os problemas da humanidade) é precisamente um dos mecanismos fundamentais da estrutura de direitos e poderes que se admite ser necessário modificar'
(p. 120).
fds Nesta perspectiva, o intercruzamento entre estas duas grandiosas obras manifesta-se em uma dúplice dimensão: a primeira diz respeito a centralidade e superveniência da vida, ou seja, do humano:
'Não pode o direito, ou as relações de poder, sobrepor-se ao ser. É, justa e necessariamente, a vida humana o elemento teleológico que alimenta o fenômeno jurídico em busca de seu substrato axiológico, a justiça' (p. 116).

fds A outra dimensão que aqui se faz referência é a possibilidade; a mantença do direito de sonhar com um porvir diferente e mais solidário do hoje que se põe. Assim como Severino que, sustentado por sua aspiração -- a única restante -- de esperança, atravessou a barreira da morte e aflorou para a vida, 'podemos nós, acreditando que o projeto neoliberal está fadado ao fracasso, visualizar novos horizontes, para que, ultrapassando as ideologias que pregam o fim da história, trilhar caminhos que respeitem a dignidade do homem, o desenvolvimento integral da sua personalidade e a conquista do seu bem-estar material' (p. 111). (...) E eis aí o mais importante papel social dos Severinos de Maria e santos da romaria: a resistência e a obstinação, na esperança de que um outro mundo é possível.
fds Assim como Severino -- e somos muitos severinos iguais em tudo na vida --, não podemos nos calar e nos acomodar a esta estrutura de reprodutora do poder e promotora da fome, e temos, no cenário da contemporaneidade, que encontrar razões para acreditar que podemos viver num mundo de cooperação e de solidariedade, num mundo capaz de responder satisfatoriamente às necessidades fundamentais de todos os habitantes do planeta.
fds Subscrevemos, por isso, a lição necessária para seguir em frente, saltando do reino da necessidade para o reino da liberdade: 'As mudanças necessárias não acontecem só porque nós acreditamos que é possível um mundo melhor. Essas mudanças hão de verificar-se como resultado das leis de movimento das sociedades humanas, e todos sabemos também que o voluntarismo e as boas intenções nunca foram o motor da história. Mas, a consciência disto mesmo não tem que matar nosso direito à utopia e nosso direito ao sonho. Porque a utopia ajuda a fazer o caminho. Porque sonhar é preciso, porque o sonho comanda a vida' (p. 123).
fds Por isso, saudamos o autor e a obra que escrevem na arquitetura da vida a ponte entre a necessidade e a liberdade, entre a barbárie e a esperança, e aqui celebram, acima da crueza das pedras, o encanto de um encontro que, resistindo à tragédia e à barbárie, produz flores e frutos.
fds Como não há melhor resposta que o espetáculo da vida, floresce nela convite à reflexão sobre a vida presente. Nela, o porvir que bate à porta. Recomendo deixá-lo entrar.