sábado, 26 de abril de 2008

# mafalda (ou, sobre a mente de um coxa)


Evangelino era um garoto estranho. Estranho, branquelo e, meio corcunda, tinha um certo ar de "vovô".

Dava tudo por um saiote xadrez, daqueles escoceses chamado "kilt", pois queria impressionar a turma da Mafalda, a mais bela turma de garotas da escola e que achava o máximo aquele gosto, que fazia lembrar os grandes heróis e guerreiros celtas e tido como marca registrada da turma do Caveira, formado por uma rapaziada mais moderna e despachada.

Evangelino era também frustrado, pois sabia que na casa onde morava, as meninas jamais o visitariam, pois, além de velha e apoucada, o odor que dela saía era bastante desagradável, levando ele mesmo a duvidar se sua casa merecia o nome de pocilga...

Uma bela tarde, Mafalda e suas turmas reuníam-se para mais uma tarde de agitação na casa de Caveira quando encontraram Evangelino e o convidaram, com um certo ar de sarcasmo, para ir junto.
Sem titubear, o garoto branquelo aceitou o convite e imaginou: "Puxa, hoje vai ser uma tarde daquelas".

E, de ônibus, lá foram todos a caminho da melhor casa da cidade. Ainda que isolado das moças, o êxtase de Evangelino era tamanho que os pêlos arrepiados faziam despontar ainda mais o branco de suas coxas – e, claro, não poderia ser diferente, haja vista a desproporção de realidades mundanas existente entre ele e a turma do Caveira, da qual, pelo menos por algumas horas, ele poderia agora ver diminuída.

Chegando lá, ainda isolado e sem perspectiva de conseguir fazer parte da turma, Evangelino passeia e se deslumbra com o que vê em volta, pois a modernidade e a excelência de tudo que vinha daquele lugar e daquela turma era indescritível.

Refeito do impacto, vê ao longe a doce Mafalda e, trazendo consigo a força dos antepassados que outrora mandavam na cidade, arrisca e dela se aproxima Mafalda, pois a mesma parecia triste com o fato de ter sido ignorada por Caveira.

Sim, já há algum tempo Caveira desprezava-a, pois passou a ter os olhos voltados apenas para Raquel, um outro tipo de mulher, mais adulta, mais cosmopolita e que vivia Brasil afora, bem diferente do ar caseiro e regional – ou "jacu", segundo Huracán, amigo de Caveira – de Mafalda.

Papo cá e lá, enquanto quase toda a Casa só falava na Raquel, ficava visível que Mafalda era uma ciúme só. Achava que não merecia ser tão desprezada. Achava que não era tão pior que Raquel. Achava que toda aquela Casa tinha que lhe prestigiar. Achava que Evangelino era a pessoa certa, no lugar certo.

Mas, como não poderia fazer nada dentro da casa de Caveira, sai e vai até o portão com Evangelino, vira-se e, de repente, beija-o.

"Ele conseguiu catá-la!", brada Huracán, expiando-os pela janela. Todos riem, e acham aquilo tudo bastante caricatural. Menos Mafalda, que achou pouca graça naquilo tudo, e vai embora, no primeiro táxi que passa. Evangelino, por sua vez, tenta voltar para a Casa de Caveira, mas a turma toda despacha-o e diz: "Nos vemos por aí, mas por ora é melhor voltar para a sua pocilga...".

E assim, a pé, Evangelino quase não acredita na tarde que teve. Lembra dos aposentos da Casa de Caveira, dos banheiros, das salas, da cozinha, das comidas, da limpeza, enfim, fica deslumbrado com tudo o que viu e, por pouco tempo, viveu. Mas, infelizmente, sabe que aquela não é a sua realidade, ainda que, ao que parece, tenha conseguido voltar a viver no meio daquela gente grande, pois o Caveira lembrou que o veria "por aí" – "... mas por quanto tempo será?", pensa Evangelino.

Sozinho, já no ônibus, teme a volta à sua vida, vivida numa casa engraçada, velha e mal cheirosa.

Porém, se socorre nas lembranças que tem de Mafalda ("Ah, a Mafalda...", suspira) e fica a pensar como fará para conseguir comprar o seu "kilt"...